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Cadernos de História da Ciência

versão impressa ISSN 1809-7634

Cad. hist. ciênc. vol.6 no.1 São Paulo jan./jul. 2010

 

Os caminhos públicos da odontologia paulista no início do século XX1

 

The public ways of the state of São Paulo dentistry in the beginning of twentieth century

 

Luiz Vicente Souza MartinoI;Carlos BotazzoII; Celso ZilboviciusIII

ICirurgião-dentista sanitarista, pesquisador do Instituto de Saúde SES-SP, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, FSP/USP. Contato: lmartino@isaude.sp.gov.br
IIPesquisador científico, docente comissionado no Departamento de Odontologia Social/ FOUSP, Doutor em Saúde Coletiva. Contato: cbotazzo@hotmail.com
III
Professor do curso de especialização de Odontologia em Saúde Coletiva da FUNDECTO/FOUSP, doutor em ciências odontológicas com área de concentração em odontologia social.
Contato: mocel@uol.com.br

 


RESUMO

Este trabalho pretende examinar as relações da emergente odontologia paulista com os serviços públicos de saúde durante o primeiro quartel do século XX, considerando a profissão e o Serviço Sanitário de São Paulo, ambos logicamente em seu contexto, a cidade de São Paulo no início deste século. Para tanto, foram analisados documentos relativos à legislação dos serviços públicos e, mais especificamente, de saúde pública deste estado, de 1891 até 1925, bem como material da literatura odontológica da época. Um panorama histórico do cirurgião-dentista e da odontologia no estado foi traçado, observando a profissão e a área de atuação ao final do século XIX e primeiro quarto do século XX. O Serviço Sanitário também foi alvo de estudo, para que os principais atos e decretos estaduais relativos ao órgão fossem expostos. Houve, ainda, uma contextualização dos assuntos abordados com aspectos sociais, econômicos e políticos concernentes aos períodos históricos em questão.

Palavras-chave: história da odontologia, história do cirurgião-dentista, Serviço Sanitário do estado de São Paulo.


ABSTRACT

This paper intends to examine the relations of the emerging dental public health services during the first quarter of the twentieth century, considering the profession and the Health Service of Sao Paulo, both in its logical context, the city of São Paulo at the beginning of this century. Thus, we examined documents relating to legislation and public services, more specifically, the public health of this state from 1891 until 1925, as well as material from the dental literature of the time. A historical overview of dentists and dentistry in the state was traced by looking at the profession and area of expertise to the late nineteenth century and the first quarter of the twentieth century. The Health Service has also been the subject of study for which the principal acts and decrees relating to the state body were exposed. There was also a contextualization of the issues addressed with social, economic and policy pertaining to the historical periods in question.

Key-words: History of dentistry, history of the surgeon-dentist, Health Services of the State of São Paulo, History of Public Health.


 

 

Introdução

Os eventos ocorridos no século XIX são fundamentais para a compreensão do século XX, além de iluminar o que ocorre nos dias de hoje. Aspectos relacionados à economia e divisão do trabalho, assim como fatos históricos importantes que influenciaram o destino dos países, como a chegada da corte portuguesa ao Brasil, por exemplo, fazem parte dos 1800. É um século ímpar para a formação social brasileira,

[...] não só pelas transformações que ocorrem nas relações de produção, modificando o conjunto das relações sociais próprias de nossa estrutura econômica e social de colônia, mas principalmente pelas conseqüentes alterações nas relações de poder político e pela constituição de um complexo aparelho de Estado Nacional. (Luz, 1982).

Em meio a mudanças no Estado brasileiro, há que se destacar um novo caráter de intervenção estatal quanto às ações de saúde que deixa de ser pontual e isolada para assumir, de forma característica e permanente, o que veio a ser a medicina social brasileira (Machado, 1978; Luz, 1982 e Telarolli Júnior, 1996). O Rio de Janeiro protagoniza o processo, que ocorrerá em São Paulo somente na década de 1880, com o desenvolvimento capitalista da economia paulista, quando a cafeicultura e os processos que a acompanharam tornaram-se fundamentais para a sociedade brasileira. (Telarolli Júnior, 1996).

Em 1884, ainda no Império, Marcos de Oliveira Arruda foi nomeado o primeiro inspetor de higiene pública da província de São Paulo e em 1891 a formulação da política de saúde começou com a organização do Serviço Sanitário (Ribeiro, 1993). Esta instituição foi montada e estruturada durante os anos de 1891 e 1893, no início do federalismo republicano.

Quanto à história da medicina e de outras áreas afins, como a odontologia, o século XIX também é peculiar no caso brasileiro, já que a medicina funda-se institucionalmente no decorrer do mesmo (Luz, 1982). Este século torna-se também fecundo para a odontologia paulista e brasileira, pois a regulamentação da profissão [...] foi institucionalizada em 1856, a partir de decreto que exigia um exame sumário para os que se dedicavam à prática (Freitas, 2001), além do ano de 1884 ser marcado pela criação do primeiro curso de odontologia no Brasil junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Este é o cenário de um Brasil republicano e federalista, tendo São Paulo como exemplo de liderança firme para o país, com um serviço de saúde pública bastante abrangente [...] estabelecido em 1892 (Love, 1982), ao tempo que a odontologia emerge entre nós já com características próprias.

Tendo em conta tais eventos, pretende-se com este trabalho examinar as relações da odontologia paulista com os serviços públicos de saúde durante o primeiro quartel do século XX, analisando a profissão e o Serviço Sanitário de São Paulo, ambos logicamente em seu contexto, a cidade de São Paulo no início do mesmo século.

Odontologia: A Clínica e a Profissão

Remeter-se a Lycurgo Santos Filho, em sua História Geral da Medicina Brasileira (1977), quando se pensa a história da odontologia brasileira, é quase obrigatório e de seu texto é retirada a afirmação de que nos três primeiros séculos, a odontologia foi apanágio dos cirurgiões e dos barbeiros, sendo que alguns físicos e certos médicos europeus, ainda no século XIX, tratavam dos dentes (Santos Filho, 1977). Porém, cabe aqui uma breve reflexão sobre o surgimento da clínica odontológica e da emergência da profissão, mesmo que a um primeiro exame ambos os assuntos possam parecer indissociáveis.

Quando se discute sobre clínica médica pensa-se num lugar de experiência constante e estável, onde há o profissional com visões e ações peculiares moldando e construindo uma profissão que hoje se apresenta como realidade (Foucault, 1987). A clínica odontológica nasce entre os séculos XVIII e XIX, ao abrigo da mesma formação discursiva que reorientou a organização da clínica médica, numa mudança de visão e classificação das doenças, passando da superfície para o interior dos corpos. Daí emerge uma teoria estomatológica no esteio do discurso médico que abriga a odontologia, que aos poucos e num longo processo político se desvincula das práticas médicas por se transformar em prática ligada profundamente ao tecnicismo que marca a profissão do cirurgião-dentista até os dias de hoje (Botazzo, 2000).

Ainda sobre esta clínica, constata-se que

[...] o conhecimento sobre bocas e dentes se constituiu antes e fora do âmbito da prática [dos] barbeiros e também que esta nova prática é uma biopolítica, e neste sentido inscreve-se no esforço geral de controle sobre a massa dos trabalhadores, embora esse ‘controle’ separado não se articule a nenhum imediato e explícito perigo à saúde pública (Botazzo, 1999; 2008).

Da clínica à profissão, encontra-se em Carvalho (2006) a afirmação de que a odontologia desenvolveu-se como uma profissão autônoma e independente da medicina primeiramente nos Estados Unidos, em meados do século XIX (Carvalho, 2006). Quando se examinam os modelos de profissão odontológica propostos pela autora, o que mais se aproxima do caso brasileiro é o americano que representa autonomia técnica e independência da odontologia em relação à medicina (Carvalho, 2006), que representou fortes influências para toda América Latina.

Ainda em Carvalho (2006), é essencial a idéia de como a odontologia chega ao século XIX e surge como profissão, já muito semelhante aos moldes atuais. A autora reconhece que no caso da odontologia americana fatores externos específicos tiveram um papel fundamental na emergência da profissão, entre eles a transformação nos padrões de consumo do açúcar, determinando a disseminação da doença cárie dentária na sociedade e a expansão do mercado e serviços odontológicos (Carvalho, 2006). E conclui, em relação ao assunto, que

[...]a conseqüente proliferação de grupos distintos de praticantes, qualificados e desqualificados na arte dental, competindo pelo mercado de serviços odontológicos evidenciam as disputas travadas em torno do estabelecimento de uma jurisdição sobre esse campo de trabalho e a emergência da odontologia como ‘profissão moderna’ (Carvalho, 2006).

A ponderação realizada acima é, a nosso ver, importante e contextual, pois aqui se defende que para certos assuntos ligados à história da odontologia há, ainda, uma certa previsibilidade, além de um empobrecimento da análise, pois no caso da odontologia há duas cristalizações marcantes, a saber, sua [suposta] origem a partir das práticas dos barbeiros e a reiteração do nome de Pierre Fauchard como o ‘pai’ da odontologia científica moderna (Botazzo, 1999).

Nestas situações torna-se claro o argumento de Luz (1982) quando defende que, por vezes, o saber histórico se confunde com o mito histórico, o cansado ‘mito’ que ainda resiste e confunde o pensar histórico (Luz, 1982). O que confirma a posição de que a história da odontologia seria um “quebra-cabeça sociológico” (Nettleton, 1998).

A Odontologia paulista

A busca pelas características da odontologia paulista do início do século XX deve ser contextualizada vis-à-vis a história da odontologia brasileira. No país, a arte dentária caracterizou-se, até o final do século XVIII, por sua indiferenciação e não institucionalização, enquanto especialidade médica ou campo de prática (Freitas, 2001; Warmling, 2009). No decorrer do século XVIII a estruturação do nível social relativo às práticas médicas concretiza-se com o clínico, geralmente com instrução formal em universidade européia num primeiro nível. A seguir, num segundo nível, estava o cirurgião normalmente formado por aprendizado direto com um clínico ou outro cirurgião mais experiente e habilitado por decreto, através do Cirurgião-mor.

De acordo com Pimenta (1998), em 1810 foi instituído o Regimento do Físico-mor, que orientava os seus representantes no exercício de suas funções e ainda, segundo a autora, havia uma divisão de responsabilidades entre as práticas médicas relativas à prescrição e à fabricação de remédios, que eram da alçada do físico-mor, e as práticas médicas relacionadas às intervenções cirúrgicas, que eram da responsabilidade do cirurgião-mor (Pimenta, 1998). Já em 30 de agosto de 1828 foram extintos os cargos de provedor-mor, físico-mor e cirurgião-mor do Império, passando para as câmaras municipais as funções relativas à inspeção de saúde pública (Pimenta, 2004; Warmling, 2009).

No Brasil da primeira metade do século XIX, é interessante notar o desenvolvimento das artes de curar. Como já descrito, havia uma hierarquia nas práticas de cura distinguindo-se pela Fisicatura-mor, onde os físicos [médicos] eram os mais conceituados e os curandeiros os menos valorizados (Pimenta, 1998). Os cirurgiões eram vistos como mais preparados que os sangradores e as parteiras, que exerceriam apenas uma parte de um conhecimento muito mais amplo, que era a arte da cirurgia (Pimenta, 1998), estando inseridos também neste espaço os dentistas. Em setembro de 1820, o cirurgião-mor José Correia Picanço, num ofício endereçado aos vereadores do Senado da Câmara da Corte, ajuda a definir melhor o grupo social que praticava as artes de sangrar, sarjar, lançar ventosas e sanguessugas, e tirar dentes. Justificando a admissão de um preto escravo a exame, Picanço explicava as razões pelas quais os escravos deveriam ser aceitos no exercício das artes de sangrar e de tirar dentes. Dizendo não haver suficiente número de sujeitos nelas peritos para socorrer à necessidade pública, julguei deveria mais atender a esta do que a qualquer outra consideração, e tanto mais porque as artes de que se trata têm mais de mecânicas do que de liberais (Pimenta, 1998).

O trabalho de Pimenta (1998) traz a realidade da época, onde se pode notar uma medicina praticada para as elites, com médicos e cirurgiões formados e institucionalizados e a medicina do povo, com seus barbeiros, sangradores, parteiras, dentistas e curandeiros muitas vezes não oficializados e marginalizados pela sociedade, como escravos, forros, livres pobres e “mulheres”.

Quanto ao ensino odontológico, nota-se que, em 25 de outubro de 1884, houve a criação do primeiro curso de odontologia no Brasil junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, possuindo um caráter eminentemente de profissão emergente, além de status inferior em relação à medicina (Freitas, 2001; Warmling, 2009). Em São Paulo, a Academia de Medicina, Cirurgia e Pharmacia é criada pela lei nº 19 de 24 de novembro de 1891. Já em 6 de setembro de 1899, a lei nº 665 concede regalias à Escola Livre de Pharmacia da Capital, pois condiciona o exercício da odontologia a prévio exame de habilitação na Escola de Farmácia da Capital e é regulamentada pelo Decreto 780, de 26-4-1900 (Vasconsellos, 1984).

Ainda pelo decreto nº 780 de 26 de abril de 1900, quando foi aprovado o regulamento da Escola Livre de Pharmacia de São Paulo, há a disposição de que o ‘exame para dentistas’ deve versar sobre: ‘noções de anatomia, fisiologia e higiene da boca; noções de patologia e terapêutica dentária; e prótese dentária’ (Vasconcellos, 1984). Em 1902, O primeiro curso de odontologia de São Paulo começou a funcionar [...] na Escola Livre de Farmácia (Mott et al., 2008). Houve uma rápida expansão do ensino da odontologia e

somente em São Paulo foram criadas, entre 1902 e 1924, dez escolas: duas na capital, a [...] EFOOSP [Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia de São Paulo] (1902) e a da Universidade Livre de São Paulo (1911), que funcionou até 1917; e oito em cidades do interior (Mott et al., 2008).

A odontologia paulista inicia o século XX permeada pela criação de associações, em 1904 a Associação Odontológica Paulista, que editou revista própria, e em 1906 a Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas (Mott et al., 2008). E para caracterizá-la é importante frisar que

[...] o reconhecimento oficial das escolas, o surgimento de associações de classe e a edição de revistas especializadas para a difusão do conhecimento, a defesa da profissão, a unificação de normas, atitudes e valores de conduta profissional, o auxílio mútuo, a luta contra os charlatães e as mudanças na legislação apontam para a constituição de um ethos profissional e para a conquista de um espaço de autonomia e legitimidade da profissão de dentista diante do Estado e da sociedade (Mott et al., 2008).

São Paulo e a Saúde Pública

A Constituição brasileira de 1891 com suas diretrizes e bases sobreviveu por toda a Primeira República e espelhou-se na Constituição americana que continha entre seus fundamentos o federalismo. A descentralização do poder deixando uma maior liberdade aos estados revelou-se trágica para alguns estados da Federação, sendo que poucos conseguiram desempenhar seu papel e um deles foi São Paulo.

Além disto, São Paulo passava por uma época importante em sua história e se dizia o carro-chefe dos estados brasileiros, sob os olhares ufanistas, paulistanistas e eugenistas abordados em Mota (2005). Com a força de trabalho que chegava para as lavouras de café, contando com os imigrantes estrangeiros e migrantes nacionais, o estado teve sua população aumentada acentuadamente, o que lhe trouxe vários problemas sanitários, na forma de epidemias e endemias. Decerto que aspectos econômicos e práticas sanitárias observadas na história brasileira constantemente estão vinculados, e os atos administrativos, em sua maior parte, sempre tiveram em vista o favorecimento do Estado e das classes dominantes. Evidentemente, a mão-de-obra do setor cafeeiro não poderia ser prejudicada pelas doenças reinantes.

Sendo, portanto, o maior produtor de café e por este estar em seu auge ao final do século XIX, São Paulo possuía uma situação privilegiada no que diz respeito aos aspectos econômicos e políticos. Tal conjuntura foi propícia para o surgimento do Serviço Sanitário, entre os anos de 1891 e 1892, no âmbito da recém-criada Secretaria do Interior que abrigava a saúde pública e a educação, e contribuiu para que este fosse pioneiro numa série de práticas sanitárias que objetivavam principalmente a manutenção da economia cafeeira (São Paulo, 1938).

E o serviço nasce na “era bacteriológica”, porém com características da antiga “teoria miasmática” presentes em suas práticas. Em contrapartida, a vacinação obrigatória, serviços de estatística, inspeção, fiscalização e polícia sanitária já estavam presentes desde a criação do órgão (Mascarenhas, 1949). Hochman (1998) afirma que durante a

Primeira República, a agenda sanitária precisou incorporar os temas da habitação popular, dos cuidados materno-infantis, da tuberculose e das doenças venéreas [e] nas reformas de seus serviços, São Paulo teve de responder à complexidade crescente da expansão da lavoura cafeeira para o oeste e, ao mesmo tempo, tratar de suas áreas decadentes e dos novos problemas sociais gerados pela urbanização e pela industrialização.

No período de 1898 a 1911, os serviços sanitários paulistas objetivaram sucesso na luta contra a peste bubônica e a febre amarela, em especial no controle sobre o porto de Santos e fronteiras estaduais (Hochman, 1998). Em 1911 ocorre uma das reformas que foram comuns ao serviço, promulgando-se o novo Código Sanitário (São Paulo, 1912). Ressalta-se nesta reforma, a restrição dos serviços de saúde pública à capital, aperfeiçoamento das medidas de controle de epidemias, coleta de estatísticas sanitárias e regulamentação de programas locais de saúde pública (Love, 1982). Além disto, há a criação da Inspetoria Médica Escolar que em 1916 deixa de fazer parte do Serviço Sanitário, passando para a Diretoria Geral de Instrução Pública na Secretaria do Interior.

Dentro do primeiro quarto do século XX deram-se, também, as reformas de 1917 e 1925, com diferentes características. A reforma de 1917 estabeleceu novo Código Sanitário e trouxe modificações importantes, como a inclusão de um Código Sanitário Rural, além de um acordo com a Fundação Rockfeller que culminou com a criação do Instituto de Higiene, dando origem futuramente à Faculdade de Saúde Pública. A reforma de 1917 foi a última modificação significativa da fase bacteriológica.

Em 1925, acontece uma reforma na Secretaria do Interior e também outra reforma sanitária, a primeira reforma médico-sanitária, priorizando a educação e a criação de centros de saúde na capital e no interior (Merhy, 1992). Segundo Iyda (1994),

[...] é pelo Código Sanitário de 1918 e pela Reforma de 1925 que a Saúde Pública cria e impõe sua área de atuação e sua autoridade no aparelho estatal. E a partir de então, incorporará, além do controle das doenças transmissíveis, a higiene do trabalho, do alimento, do escolar, a lepra, a fiscalização domiciliar, da medicina e da farmácia.

Alguns tópicos da história paulista merecem trazidos à tona, além dos aspectos econômicos e políticos expostos até o momento. Ao início do século XX, em meio a uma verdadeira explosão demográfica provocada por migrações internas, mas principalmente a imigração, surge em São Paulo o embrião de um pólo industrial impulsionado pela economia cafeeira. No início da década de 1910 há um novo aumento do fluxo migratório e uma crise cambial. Entre 1914 e 1918, ocorre a Grande Guerra com reflexos diretos ou indiretos para todas as economias do mundo. Neste contexto de crise internacional é que, em São Paulo, ocorrem as greves operárias em 1917 a 1919, além da Revolução de 1924. Culturalmente, a cidade foi palco da Semana de Arte Moderna de 1922 que influenciou marcante e definitivamente a produção cultural e outras manifestações artísticas por todo Brasil. Seguramente, estes fatos produziram respostas do Estado e da sociedade aos problemas surgidos e dentre estes estavam os problemas sanitários.

Deve-se fixar que Serviço Sanitário se baseou num modelo tecno-assistencial, que nada mais era que uma proposta de saúde pública articulada com forças sociais e políticas como qualquer serviço público constante da época (Merhy, 1992), além de ter um caráter de eventualidade nas tomadas de decisão, ou seja, a maioria de suas ações se estabeleceu quando os problemas a que se propunha resolver já haviam deixado seqüelas na população. Enfim, em relação à política de saúde paulista, vale dizer que produziu tensões, tanto entre estado e nível federal quanto entre estado e municípios, pois as relações de poder referentes às questões sanitárias foram o retrato do quadro político da Primeira República. O Serviço Sanitário permanece até a reforma sanitária de 1948, quando surge a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

Para o Brasil, instituições como o Serviço Sanitário que se encarregam da saúde coletiva – doenças da população – tenderão a ser [...] públicas, estatais [ou] Instituições Médicas de Saúde Pública [e] desde o final do Império, cada vez mais centralizadas no Estado Nacional (Luz, 1979). Para a mesma autora, entretanto, até a década de 20 não se observa uma clara definição de política de Saúde por parte do Estado (Luz, 1979), a não ser para certas epidemias ou alguns surtos de uma ou outra enfermidade. Porém,

com a reforma Carlos Chagas (Decreto 15.003 de 1921), que oficializa e dá uma primeira organização às prioridades em atenção médica, torna-se possível a expansão estatal dos serviços de atenção médica e curativa” e “as C.A.P.s serão estatizadas em 1923 com a lei Elói Chaves, através da Caixa de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários (Luz, 1979).

A Odontologia paulista e o Serviço Público

Examinando a legislação relativa ao Serviço Sanitário, desde o momento de sua criação, entre os anos de 1891 e 1892 (São Paulo, 1897), o que se encontra, a princípio, no âmbito da odontologia e, conseqüentemente, do cirurgião-dentista é, já no ano de 1892, material relativo à fiscalização do exercício da arte dentária. Na realidade, este será o único material referente à profissão até 1931, quando surgem os primeiros cargos regulamentados no interior do serviço, como o de Inspetor Dentista na Inspetoria de Fiscalização de Medicina e Pharmacia e o de Inspetor Dentário na Inspetoria de Hygiene Escolar e Educação Sanitária com o decreto nº 4891 de 13 de fevereiro (Vasconcellos, 1984).

Na apuração da legislação referente ao período estudado foi possível constatar fatos importantes para a história do cirurgião-dentista e da odontologia paulista. Pertencendo o Serviço Sanitário à Secretaria do Interior, que concentrava os setores de educação e saúde do estado, a data do primeiro cargo oficial para cirurgião-dentista poderia ter sido antecipada, caso se pensasse em serviços de saúde pública realizados por esta secretaria. Isto é dito, porque com a reforma de 1911 foi criada a Inspeção Médico Escolar, através da lei 1310 de 30 de dezembro (São Paulo, 1912), que é remodelada em 1916 com a lei 1541, passando a ser subordinada à Diretoria Geral de Instrução Pública (Vasconcellos, 1984). É nesta Inspetoria que surge no ano de 1925, com o decreto nº 3858 de 11 de junho, um cargo de Inspetor Dentário (Vasconcellos, 1984).

Além disto, também em 1925, a legislação estabelece cargo de cirurgião-dentista para o Hospício de Juquery, (decreto nº 3869 de 3 de julho de 1925), porém este serviço encontrava-se na época vinculado diretamente à Secretaria do Interior e não ao Serviço Sanitário (Vasconcellos, 1984). E catorze anos antes, em 1911, é criado “o primeiro cargo de cirurgião-dentista na administração pública do estado de São Paulo, pela lei 1280 de 19 de dezembro, que reorganiza o serviço Sanitário da Força Pública”, na Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública (Vasconcellos, 1984).

A Odontologia paulista no início do século XX

Os cuidados com a criança e a preocupação com todas as fases da vida infantil foi uma característica do movimento pós melhorias sociais (Rosen, 1994). Ao final do século XIX, algumas idéias em comum mobilizavam diversos setores da sociedade européia e americana. Dentre elas estavam a prevenção da tuberculose, redução dos riscos nas fábricas, diminuição da mortalidade infantil e a melhoria da saúde das crianças em idade escolar (Rosen, 1994). O século XX inicia-se e o estabelecimento, em 1908, de uma Divisão de Higiene Infantil, no Departamento de Saúde da Cidade de Nova York, é um marco na história do movimento pela saúde da criança (Rosen, 1994). A saúde da criança em idade escolar já havia sido alvo de desenvolvimento em alguns países, já no século XVIII, porém se consolida na Europa e Estados Unidos em final do século XIX e primeiras décadas do século XX (Rosen, 1994).

Quanto à “saúde dental”, seus cuidados iniciaram-se lentamente nos Estados Unidos e somente pela via da filantropia que houve o estabelecimento, em 1910, da Enfermaria Dentária Forsyth, em Boston, funcionando principalmente sob o aspecto da educação sanitária (Rosen, 1994). Entretanto, a primeira clínica dental gratuita para crianças em todo mundo foi provavelmente fundada por volta de 1902 pelo Dr. Ernst Jessen, de Estrasburgo, Alemanha, que foi em grande parte assimilada pela Prefeitura (Ring, 1998), guardando fortes semelhanças com os dispensários paulistas descritos a seguir, desde a iniciativa filantrópica até a assimilação pelo poder público, passando pelo atendimento odontológico prestado às crianças.

Em Mott et al. (2008) é dado que

Frederico Eyer, inspetor geral da Associação Paulista de Assistência Dentária Escolar de São Paulo e grande defensor da prevenção e do tratamento dos dentes das crianças, afirmava que São Paulo teve um papel pioneiro nesse campo [e], em 1908, a Associação Odontológica Paulista nomeou uma comissão para inspecionar os dentes das crianças que freqüentavam escolas públicas na capita”.

A leitura de revistas odontológicas que circulavam no início do século XX, permite verificar que, em 29 de setembro de 1912, no Grupo Escolar Prudente de Morais, houve a inauguração do primeiro Dispensário de Assistência Dentária Escolar de São Paulo, no interior de um estabelecimento público de ensino com atenção e assistência odontológica aos seus escolares (Revista Odontologica Brazileira, 1912).

Neste mesmo ano, apenas um ano depois da criação da Inspeção Médico Escolar, eram inaugurados mais dois Dispensários em São Paulo nos Grupos Escolares da Barra Funda e da Bela Vista (Revista Odontologica Brazileira, 1913). Os primeiros Dispensários foram instalados por iniciativa filantrópica da Associação Paulista de Assistência Dentária Escolar, criada em 1912, sob os auspícios da Associação Paulista dos Cirurgiões Dentistas, quando da inauguração do primeiro Dispensário. Os subsídios financeiros, a princípio, foram da iniciativa particular, mas em 6 de dezembro de 1913 a Câmara Municipal de São Paulo aprovava auxílio financeiro a esta associação através da lei nº 1758 (Revista Odontologica Brazileira, 1914).

Pouco antes da inauguração do primeiro dispensário, aparecem nas páginas deste mesmo periódico, em 1912, os sinais de que uma “Assistência Dentária Escolar” seria instalada na capital paulista. Vale lembrar que este dispensário seria inaugurado somente em setembro daquele ano. Como curiosidade, previa-se que os serviços clínicos seriam realizados exclusivamente por mulheres, pois pela delicadeza do sexo, poderão aquellas senhoras dispensar maior carinho as creanças confiadas a seus cuidados de proffissionaes e formar, com o pessoal docente feminino, uma só família escolar (Revista Odontologica Brazileira, 1912). O acesso das mulheres às mais diversas profissões, certas vezes defronta-se com barreiras quase que intransponíveis, porém quanto à odontologia os documentos demonstram que seu trabalho tornava-se importante para o atendimento à criança (Mott et al., 2008).

O quadro que se apresentava era de que apesar do cirurgião-dentista ainda não estar presente nos serviços públicos de saúde de São Paulo, pois não fazia parte do quadro de funcionários do Serviço Sanitário, seus serviços, nos “grupos escolares”, já eram subsidiados pelo poder público desde 1913.

 

Considerações finais

A partir de um campo de práticas constituído entre os séculos XVIII e XIX, a odontologia funda-se institucionalmente nos 1900. A criação e o reconhecimento de escolas voltadas exclusivamente ao seu ensino (séculos XIX e XX), a emergência de associações de classe e revistas especializadas (século XX), o desenvolvimento de grupos de praticantes, qualificados ou não no exercício da arte dental, competindo pelo mercado de serviços odontológicos finda por legitimar a profissão em todas as instâncias. A odontologia paulista adentra o século XX como uma “profissão moderna”.

A presença deste profissional no serviço público paulista ocorre no esteio da assistência à criança e, principalmente, da assistência ao escolar, fato também observado na Europa e Estados Unidos ao final do século XIX. Ressalvas devem ser feitas ao primeiro cargo público paulista para dentista que ocorre na Força Pública do estado de São Paulo, em 1911, e um mesmo cargo para o Hospício de Juquery, em 1925. Em 1925, todavia, surge um cargo de Inspetor Dentário na Inspetoria Médico Escolar.

Porém, são os Dispensários de Assistência Dentária Escolar que inauguram a assistência odontológica na cidade de São Paulo, no ano de 1912, de início sob o viés da filantropia e já em 1913 com auxílios públicos provindos da Prefeitura da cidade, pois são realizados aí atendimentos aos escolares e não somente inspeções e trabalhos de educação sanitária.

O fato do cirurgião dentista não fazer parte do quadro de funcionários dos serviços sanitários do estado de São Paulo, desde o início, pode estar ligado às características de ações eventuais e pontuais do Serviço Sanitário de São Paulo em seus primeiros anos e ao fato de ser a odontologia uma prática ligada profundamente ao tecnicismo e ao privatismo que marcam a profissão do cirurgião-dentista até os dias de hoje, além de sua ausência não produzir imediato e explícito perigo à saúde pública.

Todavia, não tardou para que as bocas fizessem parte dos corpos e do corpo de uma sociedade medicalizada e sob controle do Estado. Diante da situação atual da saúde bucal dos brasileiros e sob o olhar da medicina social, emerge aqui um questionamento: será a odontologia, como biopolítica, uma protagonista ou uma mera coadjuvante no cenário das políticas públicas de saúde no Brasil?

 

Referências Bibliográficas

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Data de recebimento do artigo: 12/06/2010
Data de aprovação: 03/09/2010
Conflito de Interesse – Nenhum declarado

Fontes de Financiamento – Nenhuma.

1 Trabalho baseado em monografia de conclusão de curso de especialização de Odontologia em Saúde Coletiva com o título “O Cirurgião Dentista e o Serviço Sanitário do Estado de São Paulo: uma revisão histórica” de Luiz Vicente Souza Martino, concluída em 2003.

 
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